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Isaac - Anacrônicas & Erráticas

Olá sou Isaac! Poeta, músico, historiador e psicanalista. É mestre História do Brasil e membro da Academia Caxiense de Letras. Este espaço é comentário sobre arte e sociedade do ponto de vista e com a dicção do poeta. Sem pretensões de neutralidade ou objetividade, mas em busca do pensamento honesto, da coragem da verdade e do estilo.

Padrões da indústria e do mercado na cultura. Crítica e possibilidade de subversão

Como a arte e a cultura no capitalismo se deteriora sob a lógica da produção industrial e do mercado e de como podemos rever nossas posturas de maneira crítica
Isaac - Anacrônicas & Erráticas - Fonte: Publicado originalmente em 29/12/2024 na Gato Preto - revista de arte e cultura
29/12/2024 15:23 - Atualizado 10/01/2025 22:45
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Nos tempos de rede social, é comum ouvirmos as expressões “produzir conteúdo” e “consumir conteúdo”. E uma vez que a estrutura da frase se consolida, ela se multiplica em infinitas variantes de si mesma: produzir poesia/consumir poesia, produzir arte/consumir arte, produzir cultura/consumir cultura.

O que essas formulações indicam é que, sob o capitalismo, a arte, a cultura de um modo geral, foi capturada pelo modelo e pela lógica da economia industrial. E a lógica da economia e da produção industrial é um ciclo infernal assim descrito: 1) produção de excedente ao menor custo possível; 2) venda para o consumo rápido e em massa; 3) obsolescência programada, visando o descarte e a substituição.

Não é à toa que nos últimos trezentos anos, a denúncia contra a decadência cultural no ocidente tem sido constante entre pensadores das mais diferentes linhas. Schopenhauer, Marx, Nietzsche, Kierkegaard, Spengler e praticamente todos os estudiosos das sociedades no século XX se deram conta de que saberes, valores e sensibilidades vêm se esfacelando e se perdendo. Conservadores acreditam que essa perda de “valores tradicionais” seria a causa da decadência. Críticos, como Nietzsche, pensam que a existência desses valores é que o é, e que urge substituí-los por valores novos e superiores. Outros ainda, na trilha de Marx – e, neste caso, quero fazer coro com eles – entendem que o problema é a redução de todas as relações humanas segundo a lógica do capital.

A nossa relação com a cultura segundo o modelo industrial produz as mesmas distorções e contradições das relações econômicas ordinárias:

1)      A produção de cultura ao infinito é insustentável. O bem cultural, a obra de arte, a canção, o poema, não podem surgir apenas da técnica, como uma sandália ou uma arruela. Como criação sensível, expressão da alma e do tempo, intervenção sobre a realidade em nível simbólico, a arte requer um tempo de maturação que não se enquadra nos deadlines do mercado.

2)      A produção máxima a custo mínimo condena o artista à incapacidade de produzir, pois a criação artística requer o acesso à arte. O próprio mercado que, pelo mínimo, exige o máximo, cobra o máximo pelo mínimo, de modo que a arte se torna um item de luxo muitas vezes inacessível ao próprio artista. (Quanta gente em nossa cidade faz ou fez teatro sem ter antes frequentado um por falta de oportunidade?).

3)      A arte – e qualquer bem cultural – quando precisa ser vendido em escala massiva para ser consumida rapidamente passa por duas deformações. A primeira é que ela precisa se tornar tão facilmente consumível por qualquer um que ela se esvazia, o que leva a trabalhos cada vez mais genéricos e superficiais. A segunda é que o receptor é desobrigado da atividade crítica, do esforço intelectual de apreensão da obra (afinal, ele é agora só um consumidor), e ele mesmo se esvazia enquanto humano pensante e sensível, tornando-se igualmente genérico e superficial. Cria-se o ciclo vicioso em que a obra vazia deforma o consumidor e o consumidor deformado anseia por obras ainda mais vazias.

4)      Por fim, a questão da obsolescência programada. Ora, a cultura ao longo da história é justamente aquilo que perdura, que é transmitido pelas gerações e que cada geração se apropria, se vincula e amplia. A história da cultura sempre lidou com transformações, nunca com descartes – que é o que acontece na cultura sob o capital. E um outro efeito desse mecanismo de apodrecimento rápido dos bens culturais é necessidade incessante de apresentar ‘novidades”. Ocorre que, em se tratando de arte e cultura, o próprio conceito de novidade é inconcebível, posto que ninguém cria no vazio. Além disso, as novidades, as rupturas que surgem na história da arte e da cultura são veios de possibilidade, apenas. Uma vanguarda é uma proposta, ela não serve de nada se não for experimentada até se exaurir. De modo que o imperativo constante pelo novo impede o próprio surgimento do novo. Talvez seja por isso que a arte contemporânea não forma movimentos.

Como estou me estendendo além da conta para o que pretende ser um texto ligeiro – afinal, eu e você também estamos aqui dançando a dança da produção e do consumo – vou me interromper com o seguintes questionamento: Será que não deveríamos rever nossa relação com a arte e a cultura, repensando nossa linguagem e nossa posição? Quer dizer, faz sentido pensar que um poeta é um “produtor de poesia” ou nomear como “consumidor de poesia” aquele que deveríamos chamar “leitor”? Nos decalcarmos dessas demarcações pode nos pôr em perspectiva em relação a nós mesmos, enxergar de maneira crítica a nossa relação com os bens culturais e mudar nossa postura. Ao mesmo tempo, isso pode nos oferecer a oportunidade de enxergar o quanto de nós – inclusive dentro de nossa alma – é efeito dos padrões da indústria e do mercado e o quanto podemos ganhar se nós os subvertermos.

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